Histórias de Mulheres – Febre (Adulto)

Febre

Não sabia de onde vinha aquela fúria, a vontade derrubar a louça de florzinhas pelo chão. Cremeira… Quem coloca creme no chá? Chá, num calor desses?
A toalha com sombras de velhas manchas de café, de um branco encardido de armário e tempo, ainda assim parecia imaculada, quase virginal, com as bainhas de crochê puído engomadas.
Tinha ímpetos de derrubar-lhe o copo de groselha quase morna que não conseguia beber. Sentia a roupa colando na pele úmida de suor, desejo e inquietação.
Tirava nacos do pão morno, passava-os na manteiga amolecida e comia, tentando alinhavar as idéias ou os desvarios.
Queria arrancar a cambraia e abraçá-lo ali, entre os maços de louro e canela, alumínios que se queriam polidos e brilhantes, aromas do café de coador de pano e do manjericão que balançava no jirau. Queria pedir-lhe que a pegasse com força e com ternura – me agarra, me beija, acalma essa loucura que me faz ser um pouco à toa… Vai ver ele acha que ela parece uma vadia. E é; no fundo todas são.
Acerta uma bola de miolo gosmento no jornal aberto sobre suas tempestades, o escudo que a separa do mundo dos sãos. Não existe reação, não há o que o faça abalar-se.
Esparrama-se no encosto da cadeira alquebrada, sacode a saia como abano de forno à lenha. Forno que queima, que a deixa em brasas. Despudorada, mostra-se, as pernas largadas…
E ele? Nada. Levanta-se irritada. Recolhe a louça, joga-a na pia, bate gavetas, e faz tinir os talheres.
Não lhe rouba a concentração, apenas um olhar por sobre as páginas meio vergadas, uma sobrancelha elevada, ah, ele quase nota que ela existe. Encosta-se na pia, abre a torneira.
Molhas as mãos e passa no pescoço, no colo suado. Molha os mamilos que parecem explodir. Respira, ofegante. Ele solta os jornais e refaz o encarte, cuidadosamente. Poderia se dizer que ninguém passou por aquelas linhas. Ou pelos caminhos que ela desenha pelo corpo.
Agarra-o por trás, enlaça-o com uma das pernas, o pé descalço subindo e descendo. Ele vira, ajeitando o paletó no braço esquerdo, mantendo-a longe com o peito largo.
Ela se esfrega feito a gata Dinorah, que cochila na caixa de revistas.
Ele abaixa a cabeça, beija-lhe a testa. Está atrasado.
Ela tenta puxar-lhe o pescoço engravatado, uma das mãos sentindo-lhe as calças. Ele resmunga que parece uma louca, muito, muito vulgar.
Ela murcha, os olhos prestes a transbordar, as palavras de puta de cais contidas pelos lábios mordidos. Ódio e febre, que ainda arde, queima onde devia só aquecer.
Vingativa, enfia os dedos sorrateiros na manteiga e, ao despedir-se com aqueles arremedos de beijos curtos e sem graça, lambuza as costas do paletó, aqui e ali; facadas rançosas e indolores, cheias de rancor e mágoa.
Puxa-lhe a gravata, besunta a seda e repete o tchau amor de todos os dias, requentado como café da repartição. Velho como a repartição.
Tchau amor que eu te odeio e joga-se sobre o sofá de curvim, com vontade de chorar.
Nem sabe quantas horas passaram, a roupa lhe gruda como num passeio de chuva, mas sem prazer. As pálpebras pesam.
Arrasta-se até o quintal e banha-se na água de bica. Lava a alma e os desejos, que bom seria ter esse sabão.
Joga a camisola numa tina onde outras peças esperam atenção e alguma força. Caminha assim, nua e molhada, pelo ladrilho da casa antiga, herança maldita da sogra há muito falecida e insepulta em cada tábua, em cada gesto do marido. Vê o telefone negro, daqueles de discar.
Imagina que no bocal ainda exista um resto da respiração da velha, ou que, nesse, ela possa escutar-lhe as intimidades de onde quer que esteja, arrastando correntes.
Vai para o quarto. Joga-se molhada na cama de espaldar alto e entalhes, quase fúnebre, cuja posse e responsabilidade de manter lhe foi passada, como herança maldita. Apóia o pé molhado na cabeceira e tem vontade de rir, essa pequena transgressão é quase um prazer carnal… Lembrou-se do segredo de Anita e colocou Ne me quitte pas pra tocar. A velha que revirasse.
Da bolsa de sobra de calças jeans, com franjas de barbante e sucatas bordadas com brilhos e espelhinhos, uma das suas reminiscências, resgata a antiga agenda, um cofrinho fingido, com chavinha e buraco de coração. “Amar é jamais ter que pedir perdão”. Então está bem, que seja sem perdão. Ensaia o que dizer.Não precisa dizer nada.
-Ôi. Tudo bem?

(Em 20 de outubro de 2007)