>Desculpe qualquer coisa…

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Soube que uma pessoa – que sempre tive em boa conta- ficou chateada comigo, por uma razão qualquer que não consigo saber ao certo, apenas especular.
Não pense que me acho muito ocupada ou superior para tomar conhecimento dessas delicadezas, pelo contrario. Dói muito ser julgada sem culpa formada.
Dizem que a gente deve simplesmente esquecer quem decide tomar distância. Nem sempre é o caso; principalmente quando a gente já viveu mais da metade da vida, é doloroso e lamentável perder amigos por nada. Venha, sente-se aqui que vou contar uma historinha:
Faz uns meses resolvi arrumar armários e fiquei surpresa com a quantidade de coisas que comprei e que não tinham nenhuma serventia. Roupas que trazia para casa sem provar (ou para usar depois daquela dieta que nunca fiz), sapatos com saltos descomunais, inutilidades de cozinha que só servem para atrapalhar a vida. Livros de auto-ajuda, outros com mil maneiras de emagrecer em quatro dias e toda sorte de bijuterias que, em pleno domínio das faculdades mentais, jamais usaria; não em público. A maturidade tem dessas coisas, de repente nos dá oportunidade de rever as bobagens que cometemos quando ainda acreditávamos que os braços seriam capazes de acomodar o mundo e todos os sonhos adiados.
Enquanto encaixotava tudo, foi inevitável imaginar as boas viagens que teria feito sem gastar tanto com o que não me serviria, sob nenhum aspecto. E assim, me dei conta que agimos da mesma forma com o tempo, desperdiçando-o com bobagens, comprando brigas por coisas que não têm nenhuma importância; dormindo emburrados com quem não teve nenhuma intenção de nos machucar, implicando com quem não tem culpa nenhuma da vida não ser como a gente gostaria que fosse.
Entre um susto com um jeans rebordado com lantejoulas ainda com etiqueta, e um par de óculos de griffe (original, o que é uma pena!) escuro demais para minha visão, lembrei também dos que passam maior parte da vida competindo, disputando espaço, mídia, prestígio e afeto com quem, muitas vezes, não toma conhecimento da existência alheia. E finalmente admiti que me resta muito menos tempo a viver do que já vivi e que desperdiçar qualquer coisa, agora, seria loucura. Tempo, então, nem se fala.
Por isso, não liguei para a zanga de quem não quis conversar a respeito; afinal, parece que nossa amizade não valia tanto assim, enfim… E se nem lembro a razão, realmente não foi intencional. Mas mesmo sendo uma romântica inveterada, sei que existem rusgas que devem ser eternas pelo bem de todos, que nem sempre amigos são para sempre e talvez o melhor seja cada qual no seu quadrado. Também é prudente lembrar que, para quem quer riscar um nome do caderninho, qualquer vírgula é ponto, e que família é como suflê, quanto mais se mexe mais desanda.
Tempo. Mesmo sendo precioso só ele acomoda dores e mágoas, ainda que desnecessárias. Não há como apressar o rio ou o fruto que amadurece.
Tempo. Que exige uma dose de paciência enorme, que só se tem com maturidade e altíssimo grau de generosidade. Pois é generoso aquele que respeita o outro, e se mantém distante até que chegue a hora de voltar a dividir alegrias e afetos.
Tempo, que é ardiloso, principalmente com longas ausências, pois pode permitir que você se acostume com a distância, com o telefone que não toca, com o e-mail que não volta. E o que era uma grande saudade, corre o risco de se transformar em passado, enfim.
Então, eu soube que essa amiga está chateada. Talvez eu é que devesse estar, mas sabe?
Já me basta carregar essa pequena mágoa, que dói quando lembro o que já vivemos. Prefiro ficar quieta e pensar que não tenho mais tempo para essas coisas. Mesmo assim, acabei descobrindo que na vida real, nem todos foram felizes para sempre.

>Meu vestido inesquecível

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Naquelas ocasiões que realmente marcam a vida da gente, eu não estive exatamente bem vestida; pelo menos não como tinha imaginado. Mesmo assim, minha natureza um tanto Pollyana (aquela menina chata que sempre acha um lado bom, em qualquer tragédia), me permitiu curtir, como se estivesse chiquérrima. Depois, enterrei as fotos para esquecer os modelitos e uma certa frustração, enfim.
E já nem lembrava daquele vestidinho curto, que aos olhos alheios nada tinha de especial; mas que, ao recordar, me encheu a alma de emoção. A memória afetiva tem desses caprichos; deixa tudo num lugarzinho seguro para, sem mais nem menos, lançar seus foguetes luminosos sobre uma noite de insônia e inferno astral.
Num desses seriados de adolescentes americanos que passam durante a madrugada, a mocinha usava estampa de morangos esparsos sobre fundo azul. De repente, era década de 70 e eu, uma menina metida à mulher, toda “se achando”.
Nessa época, meu pai ‘estava’ prefeito e, ao contrário da maioria, para nossa família essa era uma boa razão para as comemorações serem mais discretas ainda, discretíssimas; quase um sussurro. Isso era um martírio, de discreta nunca tive nada e flash era tudo de bom. Fui informada das comemorações aos meus quinze anos: missa em ação de graças e, no domingo seguinte, uma fei-jo-a-da! (E eu, sonhando com boate, My Sweet Lord e Only You…, que coisa!) Daí seis meses, debutaria na Assembléia Paraense -alguma coisa tradicional haveria de viver, mesmo que me soasse estranho…
Mas que adolescente quer festejar qualquer coisa, comendo feijão com amigos dos pais e meia dúzia de meninos magricelas? Pois é. Meu traje festivo seria quimono sobre o biquíni, que pelo menos podia usar com certo orgulho, amém.
Mas foi na missa, sob o olhar do Cônego Ápio Campos, que aconteceu a redenção. Do figurino, bem entendido. Meu vestido inesquecível tinha um sóbrio azul marinho, com saia curtinha bordada com pés de morangos floridos, aqui e ali. Rebelde com ou sem causa, eu exultava por não estar de branco ou rosa, ufa!
O modelo, minha mãe achou numa revista; como era a parte mais especial do evento, dedicou-se com delicioso afinco para que saísse exatamente igual. Confesso que nem era uma coisa do outro mundo, mas hoje sei exatamente o que o fez permanecer, para sempre.
Eu simplesmente adorava estar sendo cuidada, paparicada pela minha mãe, que me levava até a casa da D. Isolda Maués para três ou quatro provas e imaginava mais isso e aquilo. E no final, nem sei como conseguiram materializar um buquezinho, igual às estampas, para enfeitar o ombro.
Eu era do tipo despachada, escolhia roupas e, mais adulta, foi pelas mãos da saudosa tia Carmélia – uma das modistas mais respeitadas da terra – que “me achei” de verdade e me vinguei das fotos que mereceram retoques. Aos quinze, ainda bancava “a tal”; mas esqueci a rebeldia e tratei de aproveitar o “colo” que veio a reboque do vestido, tem coisa melhor?
A missa, a feijoada -que foi ótima- o poster do Studio Oliveira, a foto no Isaac; na minha memória, essa foi uma época de total felicidade, absolutamente perfeita. Irretocável.
Sem aquela humildade que a educação judaico-cristã tentou me incutir -em vão- garanto que, além de felizes, éramos uma troupe linda de viver!
Quando essas recordações me tomaram, fui até o velho álbum. Meus pais, que sempre foram discretos, faziam um belíssimo par, que as pessoas paravam para admirar. (Disseram-me que a Carminho era “a cara” da Jackie Kennedy. Bobagem…Sempre foi mais bonita! E o papai era, como se dizia, um p-ã-o!) Eu e minha irmã, de nariz perfeito e maravilhosos olhos cinza-azul-esverdeados (até hoje, poucos sabem exatamente a cor dos olhos da Márcia) aparecemos sorridentes e felizes, num dos bancos da capelinha de Santo Antonio de Lisboa. Eu nem tentei disfarçar a enorme satisfação, dentro do meu melhor vestido, no meu momento mais que inesquecível. Há exatos 37 anos. Tim tim!